28/04/2021

Com Luísa de Marillac, nas idas e vindas, tecendo conexões de encontro - CONEXÃO 1: encontro com a história

 

COM SANTA LUISA DE MARILLAC, NAS IDAS E VINDAS, TECENDO CONEXÕES DE ENCONTRO!

 

Ir. Raquel de Fátima Colet, FC

Pastoral Escolar Vicentina – Província de Curitiba

 

 “Na sua juventude, tinha grande piedade e devoção em servir os pobres; levava-lhes palavras amigas, doces de fruta, biscoitos e outras guloseimas;

Deixava a companhia do esposo para subir o morro, quer chovesse ou nevasse,

a fim de aliviar um pobre que tremia de frio”

 

(Depoimento de Madame de La Cour sobre Santa Luísa)[1].

 

1. APRESENTAÇÃO: as conexões de ontem e as conexões de hoje

 

Mais de três séculos separam o tempo histórico de Santa Luísa de Marillac do nosso tempo atual. O que mudou? O que permaneceu? O que precisa mudar? O que é preciso cultivar? Nas “idas e vindas” da história, somos todos/as aprendentes, conscientes dos acertos e equívocos de ontem, descobridores/as das possibilidades do hoje, sonhadores/as confiantes de um futuro que se plasma na lucidez ativa do presente.

 

A história de Luísa de Marillac inspira a nossa história. Nós a chamamos de santa porque sua vida é um testemunho de amor a Deus e à humanidade. Nesse sentido, importa que tenhamos em mente uma compreensão de santidade que não esteja subjugada a um ideal de vida inalcançável, mágico e surreal. O reconhecimento canônico da santidade de alguns irmãos e irmãs – como Luísa -, cujas vidas foram sinais de doação a Deus e às pessoas, não é substitutivo ou superior da santidade a que todos/as nós somos chamados/as. Ouvimos do Papa Francisco a referência à “santidade no povo paciente de Deus”, expressa “nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. Nesta constância de continuar a caminhar dia após dia”; uma santidade “’ao pé da porta’, daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus” (Gaudete et Exulstate, 7).

 

Certamente, todos/as nós poderíamos nomear as “pessoas santas” com as quais temos a graça de conviver, ou que marcaram nossas vidas. Santidade é, em síntese, a busca por dar um sentido autêntico e belo à vida, com os pés fincados no chão sagrado do cotidiano, descobrindo nele a presença amorosa e cuidadora de Deus. A essa lista podemos acrescentar tantas mulheres e homens contemporâneos nossos, que estão vivendo sua santidade na doação ao cuidado das pessoas vitimadas pela pandemia, dos corredores hospitalares, laboratórios de pesquisa, instâncias de provisão e abastecimento de alimentos, às salas de aula virtuais e seus malabarismos didáticos e pedagógicos que estamos fazendo para manter o engajamento de estudantes e famílias nas atividades escolares.

 

No século XVII, vemos Luísa de Marillac percorrendo as aldeias da França, procurando identificar em cada uma delas uma pessoa letrada que pudesse assumir a função de mestra de escola para educar as crianças, especialmente as meninas. Vemos as primeiras Irmãs, que eram jovens aldeãs, empenhadas em aprender a ler e escrever para depois ensinar as crianças. Essa foi a origem da Educação Vicentina. Hoje, de link em link, entre plataformas e aplicativos, entre um escalonamento e outro, nossas andanças remotas e presenciais tem como objetivo conectar as pessoas, seus saberes, suas experiências vitais, suas individualidades, seus projetos de vida. Nós também seguimos aprendizes, desafiados/as pela necessidade de outros letramentos e leituras de mundo: domínio dos recursos tecnológicos, prática didática em formato híbrido, acolhida às famílias, gerenciamento equilibrado de nossa rotina pessoal e familiar, entre outros. Por isso, olhamos para as travessias existenciais de Luísa e vemos nelas refletidas as nossas, e confirmamos que só há sentido em nossas conexões se elas forem promotoras de encontros.

 

Conexões de encontro: assumimos essa chave de leitura para uma revisita atualizada da vida e obra de nossa fundadora, Luísa de Marillac, cuja festa celebramos no dia 09 de maio. Considerando algumas experiências significativas de sua trajetória histórica e que estão na base do surgimento de nosso carisma, especialmente em relação à educação, propomos quatro momentos que denominamos de conexões de encontro. À luz do nosso tempo, olhamos para eles como inspirações para nossas trajetórias de vida e missão, hoje.

 

2. Primeira conexão: encontro com a história

 

E, de repente, a gente se conecta com a existência humana e se vê ligado à trama histórica de descobertas e aprendizados. Para Luísa, o start dessa conexão foi em 12 de agosto de 1591. Não se sabe o local exato de seu nascimento; é provável que tenha sido em Paris ou nos seus arredores. Seu nascimento é envolvido por muitas incertezas e suposições. O que se pode afirmar com certeza é que descende de uma família nobre e influente – os Marillac (CALVET, 19--, p. 14-18). No entanto, para sua família, Luísa foi desde o início uma presença deslocada, marcada por uma origem de desencontros. Jean Calvet, um dos estudiosos de sua vida, se utiliza de uma expressão de impacto para descrever esse contexto: ela foi, desde o início, esmagada pelo mistério de seu nascimento (p. 18). Quem teria sido sua mãe? Uma criada? Um caso não assumido de seu pai? Aliás, e seu pai, seria mesmo Luiz de Marillac, como indicam algumas fontes? Há sustentáveis argumentos que permitem discordar disso (cf. MARTÍNEZ, 1995, p. 11-15).

 

Essa situação fora dos padrões destoava da expectativa social da nobreza da época e teve como consequência o não reconhecimento de Luísa como filha legítima; em relação à sua família paterna, ela foi sempre alguém que viveu à margem. Recordamos que Luísa nasceu em um período histórico em que a infância não era considerada, o que estabelecia, assim, mais um fator de exclusão. Porém, a mesma honra familiar que lhe fechou as portas para o acolhimento afetivo, colocou aos Marillac o dever moral de ampará-la de alguma forma.

 

O caminho encontrado foi junto ao Convento Real de Poissy, da Congregação das Irmãs Dominicanas, que recebia como internas meninas da nobreza e lhes oferecia uma formação em consonância com essa posição social Uma das Irmãs que lá residia era tia-avó da menina, também chamada Luísa, que era uma mulher de grande erudição (CHARPY, 1990, p. 10-11). Durante os onze a treze anos que lá residiu, Luísa teve acesso a uma educação distinta e ampla, um privilégio na época das meninas nobres. Essa base de conhecimentos múltiplos de cunho cristão e humanístico teve uma contribuição relevante na missão assumida por Luísa posteriormente, seja na formação das Irmãs como no acompanhamento das iniciativas assumidas pela Companhia, entre elas a educação.

 

Luísa deixa Poissy entre 1602 e 1604. Alguns autores indicam que de lá fora retirada por seu pai, não podendo este mais arcar com as despesas do convento; outros acenam para a saída após a morte do mesmo, em 1604, a partir do que seu tutor legal passou a ser seu tio Miguel de Marillac (MARTÍNEZ, 1995, p. 21; CHARPY, 1990, p. 10). A nova casa de Luísa foi um pensionato familiar, de condições de classe média baixa, onde viveu até por volta dos 21 anos. Conduzido por uma senhora de poucas posses e boa índole, o pensionato foi uma escola de vida para Luísa, onde aprendeu ofícios práticos e manuais ligados ao cuidado doméstico, no período referente unicamente ao universo feminino. Ali, ela aprendeu o “necessário para o governo de uma comunidade e a direção de outras pessoas. Sua personalidade se faz forte, decidida e aguçada para os negócios. Mas, também, deve ter se sentido sozinha. A solidão se apresentou já desde a adolescência, como toda a naturalidade, que era ilegítima e que não tinha ninguém” (MARTÍNEZ, 1995, p. 23). Um novo estilo de vida com novos aprendizados.

 

Dadas as condições modestas de recursos do lugar, Luísa contribuiu grandemente com esta senhora na organização de fontes de renda alternativas a partir de trabalhos realizados por ela e pelas demais jovens que com ela conviviam, ecos de sua inteligência criativa estimulada nos anos do convento. Alguns autores colocam a suspeita de que a dona do pensionato era, na verdade, a mãe de Luísa, sendo este um arranjo prévio entre a família. Essa hipótese, contudo, parece não se sustentar pois carece de base documental (CALVET, 1958, p. 27).

 

Desde pequena, Luísa teve uma sensibilidade espiritual aguçada, dimensão cultivada desde a infância junto às Irmãs. Aos poucos, viu despertar dentro de si o desejo de se consagrar a Deus. Entre as experiências de Vida Consagrada existentes na época, desenvolveu especial apreço pelas Capuchinhas, com as quais teve contato em 1606, quando um convento desta congregação se instalou em Paris. A jovem Luísa, então com 15 anos, se sentiu atraída pelo estilo de vida de oração, trabalho e austeridade das Capuchinhas, que eram chamadas de Filhas da Paixão. Com frequência, ia à capela destas Irmãs para rezar, contexto no qual assume um compromisso perante Deus de se consagrar a Ele nessa forma de vida (CHARPY, 1990, p. 11).

 

Anos mais tarde, a conselho de seu tutor e tio Miguel, solicitou ao superior dos Capuchinhos para ser admitida na congregação. A resposta negativa foi acompanhada de argumentos de que sua constituição física e saúde frágil não suportariam a austeridade vivida pelas Irmãs, e a indicação de que Deus tinha outros planos para ela. Entretanto, há nessa recusa outros elementos envolvidos, como o problema de dote insuficiente – vale lembrar que, na época, tanto o casamento quanto a entrada na vida religiosa implicavam o pagamento de um determinado valor (RICHARTZ, 2012, p. 28). Benito Martínez (CM), por sua vez, coloca em evidência outro aspecto sobre esta questão, contrapondo, inclusive, o argumento de sua fragilidade física. Se Luísa não estava apta para a vida de rígida pobreza e penitência das Capuchinhas, por que não procurou ela uma outra congregação com um estilo de vida mais ameno? Considerando o contexto da época e a influência da família na determinação do futuro dos filhos, o autor coloca que é possível que se sucedeu um jogo de interesse político dos Marillac, para o que um casamento de conveniência figurava como a melhor estratégia (1995, p. 24-25).

 

É consenso entre os autores o impacto dessa reviravolta vocacional no projeto de vida de Luísa. A impossibilidade de cumprir com o voto de consagração que havia feito anteriormente a deixou em uma situação de conflito de consciência que se estendeu por muitos anos, sentindo como se estivesse traindo seu propósito e vendo nos desafios e sofrimentos futuros um castigo por não ter mantido sua intenção primeira. Na conexão de encontro com a história, feita de altos e baixos, idas e vindas, vemos Luísa como uma jovem mulher de busca de sentido e profundidade. Nessa procura existencial aprendente, as perdas e frustrações foram suas companhias de caminhada. Porém, mais que um ponto final na estrada, os desafios dos primeiros anos se colocaram como as vírgulas que, como respiros de revisão de vida, a prepararam para as reticências novidadeiras que estavam por vir.

 

3. Da história de Luísa para a nossa história

 

Resgatar esses relatos dos primeiros anos de Luísa, buscando uma aproximação mais fidedigna dos fatos de sua vida tem se mostrado um importante recurso para compreender o conjunto de sua obra. Começamos pela consideração de que é sobremaneira importante olhar para Luísa como filha do seu tempo, buscando conhecer e entender o contexto sociocultural e religioso da época, bem como atualizar suas linguagens. Um olhar anacrônico, ou seja, uma leitura do passado a partir dos critérios e valores do presente além de ineficazes, se revela nocivo. Em suma, o convite é sempre buscar a intuição genuína que permeia os fatos e acontecimentos, e isso não se consegue com abordagens superficiais ou refém de interesses contemporâneos.

 

 A personalidade da mulher que admiramos e referenciamos como nossa Fundadora foi tecida nas idas e vindas destes primeiros anos, cheios de desafios e também de superação, e que deixaram marcas profundas em sua vida. Se houve um tempo em que esse período foi envolto em penumbra e ignorância, o apelo para nós hoje é que possamos revisitá-lo com atenção e humanidade, pois é esse o elemento sobressaliente: a humanidade de Luísa, vivida nos contratempos, nas ausências e presenças de sua história pessoal. Um autêntico projeto de vida começa pela coragem lúcida e sincera de encararmos nossa história como ela é, com suas luzes e sombras, acertos e equívocos. Pessoa nenhuma é uma página em branco ou é feita de registros incólumes. Somos feitos/as dessa aventura arriscada que é viver, cada dia com sua página própria. Na linguagem poética como já declamado por Cora Coralina: “Minha vida... quebrando pedras e plantando flores” (2013, p. 11).

 

Numa perspectiva pedagógico-pastoral, essa primeira conexão tem para nós educadores/as vicentinos/as uma importância singular. Nós que temos como missão “educar crianças, adolescentes e jovens”, sabemos da importância singular que essas etapas da vida possuem na formação e desenvolvimento da estrutura biopsíquica e socioemocional de uma pessoa. Todos os dias temos a oportunidade de imprimir registros construtivos, integradores, humanizados e humanizadores nas páginas da vida daqueles/as que são o sentido de nossa missão educativa – os/as estudantes. Mas, não somente a eles/as; nós também somos marcados/as permanentemente pelas idas e vindas de nossa vulnerável humanidade aprendente. E é por isso que nos entendemos como Comunidade de Aprendizagem.

 

 Essas marcas ganham em alcance e profundidade ao serem mediados pela ciência pedagógica e pelas múltiplas interfaces do conhecimento, e são iluminadas pela sabedoria do cotidiano tecida nas relações interpessoais, no encontro intergeracional, na percepção respeitosa da alteridade, na cooperação dos diferentes sujeitos dentro da ambiência escolar. Quando na Pedagogia Vicentina falamos da Formação Integral, acenamos para essa integralidade e inteireza e ser e estar no mundo, bem como dos processos plurais que envolvem essa presença ativa e efetiva (PV, 175).

 

Sob a ótica do carisma, o encontro com a história é um convite à acolhida compassiva de nós mesmos/as e da pessoa próxima. Nas atitudes de Jesus reverberadas na vida de nossos Fundadores percebemos a centralidade da pessoa e a busca para que esta seja protagonista de sua própria existência: “Levanta-te! Vem para o meio!” (Mc 3,3b); “...eu tampouco te condeno, vai...” (Jo 8,11). Como Rede Vicentina de Educação afirmamos na proposta temática para 2021 que “nossas conexões importam! Todas elas”. Isso se sustenta no princípio de que, conectados/as com nossa própria história, com a história das outras pessoas, com a história do mundo, o que legitima e fecunda nossa existência é a dignidade comum que compartilhamos, dignidade esta, que nos individualiza sem nos tornar individualistas, e nos insere numa comunidade de iguais sem nos tornar relativos/as.

 

Nesse movimento pessoal e coletivo de reconhecimento mútuo, nossa atenção cuidadora se volta com particular afeto e efeito para as pessoas cujas histórias se veem marcadas de modo mais intenso pela privação e pelo sofrimento. Não se trata de enaltecer a dor ou de ratificar as pobrezas, mas de reconhecermos que, como humanidade, nossos passos vulneráveis são como sementes que carregam vidas em potencial. Como foi para Luísa, a história é chão fértil onde elas despertam da inércia segura de seus próprios limites. Como foi para Luísa, a educação é caminho de (re) significação e refazimento para quem assume o risco de romper as membranas que cerceiam uma semente. Encontrar-se com nossa própria história, com a história do/a outro/a, com a história do mundo sempre será uma conexão que importa!

 

“Uma folha morta não cai inutilmente.

Uma lágrima não rola em vão.

Uma invisível mão misericordiosa

Suaviza a queda da folha,

Enxuga o pranto da face”

(KOLODY, 2014,  p. 117).

 

Continua...

 

Referências:

 

 

CALVET, Jean. Santa Luísa de Marillac. Auto-retrato. Tradução: Filhas da Caridade. Lisboa/Portugal: Editorial Evangelizare, 1958.

CHARPY, Elisabeth. Contra ventos e marés. Luisa de Marillac. Rio de Janeiro: Associação São Vicente de Paulo: 1990.

______ Um Caminho de Santidade. Luísa de Marillac. Tradução: A. Ornelas. Lisboa/Portugal: Grafilarte, [199-?].

CORALINA, Cora. Meu livro de Cordel. 18ª ed. São Paulo: Global, 2013.

FRANCISCO. Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate. Sobre a chamada à santidade no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2018.

FILHAS DA CARIDADE DE SÃO VICENTE DE PAULO. Santa Luísa de Marillac. Curitiba, 2013. Disponível em: < https://filhasdacaridade.com.br/institucional/sta-luisa-de-marillac/6>. Acesso em: 16 abr. 2021.

KOLODY, Helena. Infinita Sinfonia. Poesia. Curitiba: Inventa, 2014.

MARTÍNEZ, Benito. Empeñada en un Paraíso para los pobres. Salamanca/Espanha: Editorial CEME, 1995.

RICHARTZ, Alfonsa. Luísa de Marillac. 1591-1660. Tradução: Maria do Rosário Pernas. Lisboa/Portugal: Paulinas Editora; Artipol – Artes Tipográficas, 2012.

SANTA LUISA DE MARILLAC. Correspondência e Escritos. Tradução: Ir. Lucy Cunha, FC. São Paulo: Editorial Legis Summa, 1983.

SOUZA, Flávio Fernando de; COLET, Raquel de Fátima; FERRAZ, Rogério (org). Pedagogia Vicentina: concepções, compromissos e práticas. Curitiba: ICQ, 2019.

 


[1] A COMPANHIA DAS FILHAS DA CARIDADE – Documento 809, p. 1060. Segundo anotação no autógrafo do documento, Madame de La Cour trabalhava para Santa Luísa na época em que esta era casada.

Galeria